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sábado, 9 de agosto de 2008

A Ressurreição





Em uma vila de pescadores perdida em nenhum lugar,
o enfado misturado com o ar,
cada novo dia já nascendo velho,
as mesmas palavras ocas,
os mesmos gestos vazios,
os mesmos corpos opacos,
a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais se lembrava...
Aconteceu que, num dia como todos os outros, um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar.
E ele gritou.
Todos correram.
Num lugar como aquele até uma forma estranha é motivo de festa.
E ali ficaram na praia, olhando, esperando.
Até que o mar, sem pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia.
Para o desapontamento de todos:
era um homem morto.
Todos os homens mortos são parecidos porque há apenas uma coisa a se fazer com eles:
enterrar.
E, naquela vila, o costume era que as mulheres preparassem os mortos para o sepultamento.
Assim, carregaram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora.
E o silêncio era grande enquanto o limpavam das algas e liquens,
mortalhas verdes do mar.
Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio.
Uma mulher balbuciou:
"Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao entrar em nossas casas.
Ele é muito alto...".
Todas as mulheres, sérias e silenciosas, fizeram sim com a cabeça.
De novo o silêncio foi profundo,
até que uma outra voz foi ouvida.
Outra mulher...
"Fico pensando em como teria sido a sua voz...
Como o sussurro da brisa?
Como o trovão das ondas...?"
"Será que ele conhecia aquela palavra secreta que quando pronunciada
faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo?"
E elas sorriram e olharam umas para as outras.
De novo o silêncio.
E, de novo, a voz de outra mulher...
"Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram?
Brincaram com crianças?
Navegaram mares?
Travaram batalhas?
Construíram casas?"
"Essas mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o rosto de uma mulher,
será que elas sabiam abraçar e acariciar o seu corpo?"
Aí todas elas riram que riram, suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro estava se transformando numa ressurreição:
um movimento nas suas carnes, sonhos esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, desejos proibidos aparecendo na superfície de sua pele...,
...os corpos vivos de novo e os rostos opacos brilhando com a luz da alegria.
Os maridos, de fora, observavam o que estava acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao perceberem que um morto tinha um poder que eles mesmos não tinham mais.
E pensaram nos sonhos que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito...,
...nos mares que nunca tinham navegado, nas mulheres que nunca haviam amado.
A história termina dizendo que finalmente enterraram o morto.
Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.



(adaptado por Rubem Alves. de um conto de Gabriel García Márquez)